A década que tornou possível o HAL 9000, o computador inteligente de ‘2001: uma odisseia no espaço’


Saibamos aproveitar a extraordinária oportunidade que a IA nos oferece para nos tornarmos mais produtivos, seja nos locais de trabalho, seja nas salas de aula, libertando espaço para viver aquilo que nos torna humanos.


Um ano antes do Homem ir à Lua, Stanley Kubrick produziu e realizou um dos filmes mais singulares de ficção científica, “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Nele, projeta-se um futuro três décadas à frente, onde cientistas numa base lunar descobrem um monólito deliberadamente enterrado no subsolo da Lua. Esta descoberta conduz a uma missão humana a Júpiter. No segmento principal desta obra-prima, a longa viagem – que dura mais de um ano – é feita com a equipa científica em hibernação. Apenas dois astronautas permanecem acordados e ativos, auxiliados por um computador com inteligência artificial, o HAL 9000. Este computador comunica com a tripulação por linguagem natural, de forma indistinguível da de um humano. O HAL 9000 é mais do que um mero computador, é um dos personagens principais do enredo.

Convicto da sua perfeição e instruído a esconder da tripulação o verdadeiro propósito da missão, o HAL 9000 torna-se paranoico. Começa por “alucinar” uma avaria no sistema de comunicações, culminando na eliminação de toda a tripulação, excepto um dos dois astronautas ativos. Este, por sua vez, acaba por desativá-lo, numa das cenas mais dramáticas do filme. Momentos antes da sua ‘morte’, o HAL 9000 entoa a canção, “Daisy Bell”, a mesma usada num dos primeiros exemplos de fala por computador 60.

Algo que foi considerado, durante décadas, tecnologicamente inatingível está hoje ao alcance da tecnologia. Neste momento, assistimos ao desenvolvimento da tecnologia que torna um HAL 9000 possível, incluindo alucinações. Para construir um sistema como o HAL 9000, são necessárias duas tecnologias já existentes: um modelo de linguagem e uma interface que permita a sua interação com os sistemas físicos de uma nave espacial.

Nascida em meados da década de 50 do século XX, a inteligência artificial (IA) emergiu como uma nova área do conhecimento, propondo-se conhecer a inteligência humana ao ponto de a conseguir replicar em computador. O processamento da linguagem natural, uma das áreas da IA, assistiu nos últimos anos a um crescimento sem precedentes, chegando ao grande público com o exemplo do ChatGPT. Este avanço iniciou uma verdadeira revolução na forma como a civilização se relaciona com a tecnologia, desde o local de trabalho às salas de aula.

O ChatGPT é um modelo de linguagem, como muitos outros, que se baseia em dois componentes principais. O primeiro é um sistema capaz de gerar linguagem ortográfica, sintática e semanticamente correta. Este sistema, um modelo generativo, aprendeu através de métodos estatísticos, sendo alimentado por volumes incomensuráveis de textos, disponibilizados por via da digitalização da sociedade assente na Internet. O segundo componente é um modelo de aprendizagem por reforço, que essencialmente produz as respostas que melhor satisfazem um utilizador. Este último componente funciona com o objetivo de receber reforços positivos de quem o utiliza, permitindo ao ChatGPT apresentar um nível de conversação praticamente indistinguível do humano e demonstrar uma aparente inteligência e conhecimento notáveis. E nesse âmbito, ao nível do outrora imaginado HAL 9000.

Mas o HAL 9000 fazia mais do que conversar com humanos e jogar xadrez: controlava toda a nave espacial da missão a Júpiter. Para tal, é necessário um mecanismo que ligue um modelo de linguagem a um sistema externo. E, de facto, tal capacidade já existe. Os modelos de linguagem são hoje capazes de auxiliar na programação de computadores, de apoiar a produção de apresentações, documentos e folhas de cálculo, de processar as nossas caixas de correio eletrónico; de produzir ilustrações, e até de gerar filmes de Bollywood. Atualmente, assistimos ao surgimento de tecnologias como o MCP (Model Context Protocol), que suportam interfaces genéricas e padronizadas entre modelos de linguagem e os sistemas, com os quais interagem através de uma API (Application Programming Interface). Isto permite a qualquer pessoa com as bases de programação integrar um modelo de linguagem e um outro sistema.

O filme “2001: Uma Odisseia no Espaço” previu, com singular precisão, um conjunto de tecnologias que são hoje uma realidade: videoconferência, autenticação biométrica, e a privatização do transporte e alojamento espacial. Atualmente, atingimos o nível tecnológico para fabricar uma máquina com todas as capacidades do HAL 9000, incluindo as suas alucinações. No entanto, talvez nem todas as caraterísticas: não parece que os modelos de linguagem atuais demonstrem ainda o medo da “morte” exibido pelo HAL 9000 no filme.

Historicamente, todas as tecnologias atingem um patamar após um crescimento mais ou menos rápido. Atualmente, vivemos uma fase de acelerado desenvolvimento da IA, particularmente no que diz respeito aos modelos de linguagem e à sua integração com outros sistemas. É ainda difícil antever quando chegaremos a esse patamar de estabilização, mas a História ensina-nos que, mais cedo ou mais tarde, ele surgirá. Não sabemos como será, mas o que a História também nos diz é que é pouco plausível que seja o fim da humanidade. Não fomos todos eletrocutados quando as redes elétricas foram criadas, não perecemos numa aniquilação nuclear mútua com a descoberta da física nuclear, nem o mundo moderno colapsou com a passagem do ano 2000.

Encaremos o futuro com otimismo, aprendendo com os seus desafios, com espírito crítico e prudência, mas sem o terror de que desta vez é que é o fim da civilização. Saibamos aproveitar a extraordinária oportunidade que a IA nos oferece para nos tornarmos mais produtivos, seja nos locais de trabalho, seja nas salas de aula, libertando espaço para viver aquilo que nos torna humanos, e assim melhor “habitar a substância do tempo”.

Professor do Instituto Superior Técnico / Investigador do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR-Lisboa)

A década que tornou possível o HAL 9000, o computador inteligente de ‘2001: uma odisseia no espaço’


Saibamos aproveitar a extraordinária oportunidade que a IA nos oferece para nos tornarmos mais produtivos, seja nos locais de trabalho, seja nas salas de aula, libertando espaço para viver aquilo que nos torna humanos.


Um ano antes do Homem ir à Lua, Stanley Kubrick produziu e realizou um dos filmes mais singulares de ficção científica, “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Nele, projeta-se um futuro três décadas à frente, onde cientistas numa base lunar descobrem um monólito deliberadamente enterrado no subsolo da Lua. Esta descoberta conduz a uma missão humana a Júpiter. No segmento principal desta obra-prima, a longa viagem – que dura mais de um ano – é feita com a equipa científica em hibernação. Apenas dois astronautas permanecem acordados e ativos, auxiliados por um computador com inteligência artificial, o HAL 9000. Este computador comunica com a tripulação por linguagem natural, de forma indistinguível da de um humano. O HAL 9000 é mais do que um mero computador, é um dos personagens principais do enredo.

Convicto da sua perfeição e instruído a esconder da tripulação o verdadeiro propósito da missão, o HAL 9000 torna-se paranoico. Começa por “alucinar” uma avaria no sistema de comunicações, culminando na eliminação de toda a tripulação, excepto um dos dois astronautas ativos. Este, por sua vez, acaba por desativá-lo, numa das cenas mais dramáticas do filme. Momentos antes da sua ‘morte’, o HAL 9000 entoa a canção, “Daisy Bell”, a mesma usada num dos primeiros exemplos de fala por computador 60.

Algo que foi considerado, durante décadas, tecnologicamente inatingível está hoje ao alcance da tecnologia. Neste momento, assistimos ao desenvolvimento da tecnologia que torna um HAL 9000 possível, incluindo alucinações. Para construir um sistema como o HAL 9000, são necessárias duas tecnologias já existentes: um modelo de linguagem e uma interface que permita a sua interação com os sistemas físicos de uma nave espacial.

Nascida em meados da década de 50 do século XX, a inteligência artificial (IA) emergiu como uma nova área do conhecimento, propondo-se conhecer a inteligência humana ao ponto de a conseguir replicar em computador. O processamento da linguagem natural, uma das áreas da IA, assistiu nos últimos anos a um crescimento sem precedentes, chegando ao grande público com o exemplo do ChatGPT. Este avanço iniciou uma verdadeira revolução na forma como a civilização se relaciona com a tecnologia, desde o local de trabalho às salas de aula.

O ChatGPT é um modelo de linguagem, como muitos outros, que se baseia em dois componentes principais. O primeiro é um sistema capaz de gerar linguagem ortográfica, sintática e semanticamente correta. Este sistema, um modelo generativo, aprendeu através de métodos estatísticos, sendo alimentado por volumes incomensuráveis de textos, disponibilizados por via da digitalização da sociedade assente na Internet. O segundo componente é um modelo de aprendizagem por reforço, que essencialmente produz as respostas que melhor satisfazem um utilizador. Este último componente funciona com o objetivo de receber reforços positivos de quem o utiliza, permitindo ao ChatGPT apresentar um nível de conversação praticamente indistinguível do humano e demonstrar uma aparente inteligência e conhecimento notáveis. E nesse âmbito, ao nível do outrora imaginado HAL 9000.

Mas o HAL 9000 fazia mais do que conversar com humanos e jogar xadrez: controlava toda a nave espacial da missão a Júpiter. Para tal, é necessário um mecanismo que ligue um modelo de linguagem a um sistema externo. E, de facto, tal capacidade já existe. Os modelos de linguagem são hoje capazes de auxiliar na programação de computadores, de apoiar a produção de apresentações, documentos e folhas de cálculo, de processar as nossas caixas de correio eletrónico; de produzir ilustrações, e até de gerar filmes de Bollywood. Atualmente, assistimos ao surgimento de tecnologias como o MCP (Model Context Protocol), que suportam interfaces genéricas e padronizadas entre modelos de linguagem e os sistemas, com os quais interagem através de uma API (Application Programming Interface). Isto permite a qualquer pessoa com as bases de programação integrar um modelo de linguagem e um outro sistema.

O filme “2001: Uma Odisseia no Espaço” previu, com singular precisão, um conjunto de tecnologias que são hoje uma realidade: videoconferência, autenticação biométrica, e a privatização do transporte e alojamento espacial. Atualmente, atingimos o nível tecnológico para fabricar uma máquina com todas as capacidades do HAL 9000, incluindo as suas alucinações. No entanto, talvez nem todas as caraterísticas: não parece que os modelos de linguagem atuais demonstrem ainda o medo da “morte” exibido pelo HAL 9000 no filme.

Historicamente, todas as tecnologias atingem um patamar após um crescimento mais ou menos rápido. Atualmente, vivemos uma fase de acelerado desenvolvimento da IA, particularmente no que diz respeito aos modelos de linguagem e à sua integração com outros sistemas. É ainda difícil antever quando chegaremos a esse patamar de estabilização, mas a História ensina-nos que, mais cedo ou mais tarde, ele surgirá. Não sabemos como será, mas o que a História também nos diz é que é pouco plausível que seja o fim da humanidade. Não fomos todos eletrocutados quando as redes elétricas foram criadas, não perecemos numa aniquilação nuclear mútua com a descoberta da física nuclear, nem o mundo moderno colapsou com a passagem do ano 2000.

Encaremos o futuro com otimismo, aprendendo com os seus desafios, com espírito crítico e prudência, mas sem o terror de que desta vez é que é o fim da civilização. Saibamos aproveitar a extraordinária oportunidade que a IA nos oferece para nos tornarmos mais produtivos, seja nos locais de trabalho, seja nas salas de aula, libertando espaço para viver aquilo que nos torna humanos, e assim melhor “habitar a substância do tempo”.

Professor do Instituto Superior Técnico / Investigador do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR-Lisboa)